Namaste amigos,
O objetivo deste pequeno ensaio é esclarecer a natureza da espiritualidade
Kaula e seu eventual vinculo com o voto Kapalika (o KapalaVrata) e trazer
elementos para a equilibrada apreciação destas duas tradições. Uma das maneiras
de conduzir este estudo é observando os paradigmas e mitos presentes nas duas
escolas pois, através deles, poderemos entender melhor os ritos que revivem e
atualizam constantemente os ideais buscados nestas tradições.
A escola Kaula possui uma vasta produção literária e muito
do que conhecemos ou ouvimos sobre Tantra vêm de escrituras desta escola. O
RudraYamala Tantra, o BrahmaYamala Tantra, o Kularnava e o famoso MahaNirvana
Tantra são exemplos mais populares. Os ideais Kaula podem, portanto, ser
apropriadamente pesquisados nas escrituras Tantrikas e embora o foco destes
textos esteja no detalhamento das práticas rituais, muitos mitos e narrativas
também são encontrados por lá.
Os Kapalikas, entretanto, não possuem produção literária
conhecida. Isto é facilmente compreensível devido ao caráter itinerante dos
adeptos desta escola que realizam suas práticas em campos crematórios espalhados
pelo subcontinente Indiano. O alicerce de seu paradigma e ideais está no
KapalaVrata e é transmitido exclusivamente por tradição oral. Contudo isto não
significa que não haja uma base racional em sua Teologia, lembremos que os
Kapalikas também são conhecidos como “SomaSiddhantis” o que implica que eles seguem
uma metodologia própria sob base racional (um Siddhanta).
Devido ao caráter extremo de seus votos e práticas, os
Kapalikas logo adquiriram uma aura mística e misteriosa nas narrativas
Indianas. Um dos primeiros relatos escritos de sua existência encontra-se no
poema GathaSaptaShati escrito por Hala por volta do século III. Neste e em
outros relatos encontramos a descrição das seis insígnias Kapalikas que eram
carregadas junto com a Kapala que é o foco de seu voto, são elas: o cordão de
pescoço, o ornamento de pescoço, os brincos, a jóia peitoral, as cinzas e o
cordão sagrado (YajñoPavita). Apenas a presença deste último item já derruba
definitivamente qualquer tentativa de associação dos Kapalikas com doutrinas
“revolucionárias” ou “transgressoras”, ou ainda, com um “caráter
anti-Brahminico” tão apreciado pelos escritores modernos na sua ânsia de
inverter ou destruir os eternos valores sociais. O Kapalika tem um Dharma, ou
seja, uma regra de conduta que o permite aproximar-se dos aspectos mais
temíveis da Divindade.
O Dharma dos Kapalikas só pode ser compreendido mediante a
perspectiva divina de uma narrativa já presente desde o período Védiko em
textos como o Shatapatha Brahmana. Segue um breve resumo da mesma:
Diz-se que no começo dos tempos o deus criador Brahma criou
à partir dos poderes de sua mente uma filha, e após a criação dela ele começou
à desejá-la. Seu desejo era tão grande que ele fez para si quatro rostos de
forma que nunca a perdesse de vista em qualquer direção que ela estivesse.
Movida pela qualidade da modéstia ela veio para o plano terrestre de forma à
escapar dos olhares, e tão logo foi descoberta, Brahma criou mais um rosto que
olhava para baixo. O Senhor Shiva, na sua forma terrível de Bhairava, tomou
conhecimento desta situação que vai contra o Dharma e a moralidade e num gesto
heroico e imediato decapitou a quinta cabeça de Brahma que olhava para baixo.
Muito embora a ação de Bhairava fosse justa e digna para
preservar os bons costumes, ao cometê-la ele se colocava na posição de um Brahmanicida,
ou seja, de um criminoso que mata um homem sábio e digno de respeito. Este é um
dos crimes mais terríveis segundo o Dharma pois os anciãos, os sábios e os
detentores de conhecimento devem sempre ser protegidos. Ao cometer este crime
ele deveria certamente ser punido. E assim o foi.
Shiva Bhairava foi então destituído de todas as suas
opulências, de sua sabedoria, de todas as alegrias e de tudo o que fosse
auspicioso, até mesmo de suas roupas. Ele foi mandado à Terra para que vagasse
como um mendigo, sem nunca ter nenhum abrigo, completamente nú, carregando
apenas a cabeça decepada de Brahma para que todos que o vissem soubessem do
criminoso terrível que ele era.
Shakti, a Mãe Divina, foi a única que teve compaixão daquela
figura terrível e assustadora. Ninguém mais sequer ousava olhar para aquele
monstro encarnado. Sabendo que Bhairava se dirigia à Benares para mendigar, a
Mãe do Universo tomou então a forma de AnnaPurna, a Deusa repleta de grãos e
nutrição, Aquela que sacia todos os desejos da mente. Ao chegar ao destino
Shiva Bhairava pediu auxilio à Deusa que plenamente o atendeu e, à partir daí,
onde quer que ele fosse, era a Deusa que o nutria sob Suas diferentes formas.
Depois de um ciclo de tempo muito grande (MahaKala) Shakti
abençoou o Senhor Bhairava e o restituiu à todos os seus esplendores. O herói
que havia preservado o Dharma de forma tão imediata e agressiva estava de volta
á suas opulências após ter expiado o demérito causado pelo seu ato tão
impensado.
O KapalaVrata é uma celebração deste mito onde o herói é
condenado ao tentar restabelecer a ordem Divina. Os Kapalikas carregam o crânio
por toda a vida e só se alimentam daquilo que é oferecido lá, desta forma eles
estão permanentemente identificados com o Senhor Shiva. Este voto tornou-se um
exemplo místico dos buscadores da justiça e da proximidade com a Divindade, da
qual eles passavam à depender completamente. Muitos sábios e santos adotaram
este exemplo e o uso da Kapala se tornou um ícone de várias seitas Shivaistas,
Budistas e Tantrikas. Kanhapada (KrishnaPada em Sânscrito) que viveu no século XI
e era um grande expositor do Budismo Tântrico Sahajiya apresentava à si mesmo
como um Kapalin, como aquele que carrega um crânio.
Observamos então um dos mais claros aspectos em comum entre
a doutrina Kaula e a dos Kapalikas – a mítica do herói, daquele que se esforça
para vencer as tribulações em nome da ordem, da justiça e do Dharma. A
disciplina espiritual mais característica dos Kaulikas é o Vira Sadhana, a
disciplina do herói. Aquela onde os cinco elementos sagrados são consumidos em
honra à Deusa, buscando alí o equilíbrio de todos os aspectos inferiores de sua
psique e a união com a Divindade.
Que Mãe Kali nos abençoe
Rudrananda Saraswati
Um comentário:
As escrituras Tantrikas dos Agamas diferenciam os antigos Pashupatas e KalaMukhas dos Kapalikas e os Aghoris. Entretanto nem sempre esta identificação é levada em consideração e muitos Aghoris se dizem Kapalikas e vice-versa.
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