quarta-feira, 27 de março de 2019

Sadhana das formas iradas


               O Kaula Dharma é apresentado em sete “estágios” conforme a afinidade e competência (Adhikari) do Sadhaka. O Guru “apresenta” o trabalho nestes estágios na medida em que certas características se demonstram no Sadhaka. Estes estágios, em ordem de aprofundamento, são: Vedikachara, Vaishnavachara, Shaivachara, Dakshinachara, Vamachara, Siddhantachara e Kaulachara. Os quatro primeiros estágios (Vedikachara, Vaishnavachara, Shaivachara e Dakshinachara) estão associados ao momento espiritual de PraVrtti quando a alma busca compreender e realizar-se no plano material, ou seja, ser bem sucedida na obtenção de Dharma, Artha e Kama. Quando essa busca está amadurecida (mas não necessariamente realizada) surge a afinidade com as aspirações espirituais e a tendência (Vikalpa) ao retorno a Divindade (Moksha). Este “retorno à Divindade” só é possível na medida em que a alma já não anseia mais pelas experiências no mundo e as ações não são mais executadas visando o proveito próprio mas apenas para o cumprimento do Dharma. Para este momento espiritual que é chamado de NiVrtti são prescritas as disciplinas do Vamachara, Siddhantachara e Kaulachara. Em linhas gerais nos referimos aos quatro primeiros estágios como DakshinaMarga e aos três ultimos como VamaMarga.

               Atentemos que Kaula Dharma e Kaulachara são termos diferentes embora associados. O Kaulachara é o conjunto de disciplinas espirituais (Sadhanas) únicas que acabaram por se tornar características do Kaula Dharma. Estas Sadhanas incluem o oferecimento dos PanchaMakaras à Divindade, Kapala Sadhanas entre outras. A usurpação destas disciplinas espirituais para o deleite e prazer de indivíduos incapazes obtê-los sem o disfarce de “pessoas espiritualizadas” é o que trouxe má fama ao Tantra no Ocidente onde surgiram “terapias” e “massagens” que não possuem nenhuma referencia nas escrituras e nem compatibilidade com o cotidiano de um Sadhaka. O Kaula Dharma é o conjunto das Sadhanas dos sete estágios descritos, Sadhanas estas que são aplicadas conforme oportuno e relevante para o desenvolvimento do Sadhaka. Portanto Kaula Dharma não é um sinônimo de Vamachara (VamaMarga) embora nos seus níveis mais profundos faça uso destas disciplinas. Há escolas Tântricas que assimilaram elementos do Kulachara e também praticam seus ritos mas estas possuem outras características que lhes são próprias e são distintas do Kaula Dharma descrito nos Kaula Tantras.

               É à partir do acréscimo das disciplinas espirituais de Vamachara e Siddhantachara para o grupo de disciplinas pessoais que já eram praticadas pelo adepto que o trabalho com as formas iradas da Divindade torna-se mais intenso. Estas formas iradas e aterrorizantes (Bhaya Murti) são trazidas para o Sadhaka que já foi treinado nas disciplinas anteriores e elas o convidam à “Busca pela Verdade” (SatTarka). Devemos entender que estas formas representam tudo aquilo que é assustador ao ego do adepto que, ao enfrentá-las, torna-se “Vira”, um “herói”. Estas formas iradas não são uma simples alegoria e não devem ser tratadas como um vídeo game ou fantasia teatral. Na Sadhana elas tornam-se reais personificando o que é temido e apontando tudo aquilo que é desagradável ao ego – “Eu não sou tão competente como gostaria de ser”; “Eu não sou tão bom/forte/belo quanto gostaria de ser” etc .... O Sadhaka é então confrontado à superar a fantasia de que tudo aconteceria de forma perfeita se você apenas “pensar positivo”. Ele percebe que o mundo, manifestação da Shakti Suprema, é “real” e não tem que se sujeitar as nossas crenças sobre ele. Shakti, a Força Espiritual que rege o mundo segue as suas próprias regras que se manifestam na força da gravidade, termodinâmica e outras propriedades da Física assim como nas regras de outras forças mais sutis ainda não foram devidamente estudadas pela nossa ciência. O Tantra reconhece a impermanencia da criação diante de Brahman, o Absoluto, porém a visão da "realidade" do mundo é uma ferramenta importante para gerar gerar certos resultados na Sadhana.

               O “valente” que não sente apreensão ao realizar as Sadhanas das formas iradas não colhe os frutos desta ação. Ele perde uma valiosa oportunidade de crescimento pessoal e de aproximação à Moksha, a Libertação Final. Um dos perigos sutis na jornada espiritual através das Sadhanas Tântricas é a crença de que os obstáculos foram totalmente superados e que as mais altas realizações foram alcançadas. Esta auto-ilusão gera a estagnação pessoal e a conseqüente indisciplina e irreverência diante da Sadhana, o adepto então cai das alturas conquistadas e passa à ver a realização como mero fruto do acaso ou como uma embriagues temporária. É mais fácil candidatar-se à iniciação ao Kaula Dharma e alcançá-la do que manter-se devidamente, como um iniciado, ao longo do tempo.

               As disciplinas espirituais de cada Dharma possuem um começo, um meio e um fim e o fruto de sua realização só é alcançado através da prática consistente baseada no correto entendimento dos princípios que são ali aplicados. A mistura aleatória ou caprichosa de sistemas independentes, quer seja em suas práticas ou em seus conceitos, acaba por se tornar um obstáculo nos níveis mais profundos destes mesmos sistemas. A prática de recitar Mantras, por exemplo, é comum a maioria das tradições espiritualizadas entretanto, nas disciplinas espirituais mais profundas e reservadas, cada tradição terá suas próprias perspectivas e aspectos únicos.

               A prática das Sadhanas das Deidades Iradas possui regras especificas que permitem que as energias geradas atuem de forma positiva na vida do Sadhaka. O descumprimento destas regras libera forças que podem atuar de forma diversa ao que foi prescrito trazendo revés, má sorte e desventura. No meio espiritual é comum vermos o surgimento de aventureiros trazendo supostos grandes conhecimentos e que, depois de algum tempo, desaparecem tragados pelos problemas em suas vidas pessoais. A má sorte, falta de longevidade e infortúnio não são frutos gerados pela correta Sadhana das formas iradas da Divindade.

Jaya Bhairava.


terça-feira, 5 de março de 2019

Etiqueta básica em Templos


               Muitos interessados no Dharma gostariam de visitar um Templo que siga as prescrições tradicionais mas sentem-se desconfortáveis com a possibilidade de “cometer alguma gaffe”. Este pequeno guia traz algumas dicas para a sua visita.

               Alguns cuidados são relevantes para todos.
               Os Templos são a residência de formas especificas da Divindade e os devotos vão lá para ter o Darshana, ou seja, a visão espiritual, destas formas. Portanto não vá aos Templos de mãos vazias. Flores, frutas, um saco de arroz cru, uma caixinha de leite ou de canfora são itens sempre usados e benvindos.
               Use roupas confortáveis mas que mantenham o devido decoro, lembre-se que talvez tenha que sentar-se no chão durante algum tempo. As meias devem estar limpas. Os sapatos serão tirados nos locais onde acontecem as cerimônias. Evite apontar as solas dos pés em direção às representações da Divindade.
               Diante da representação da Divindade evite conversas vãs, muitos estarão ali para recitar silenciosamente os Mantras de sua Sadhana e interferências devem ser evitadas.
               Em várias tradições as Deidades são adoradas com Mantras específicos que o leigo não teve acesso, portanto se desejar uma Puja ou qualquer outro ritual solicite a presença de um Pujari autorizado que saberá quais Mantras usar.

               Além do que se aplica à todos podemos comentar sobre a etiqueta de boa conduta entre os membros da família espiritual (ou aqueles interessados em sê-lo).
               Há muita coisa à se fazer num local de adoração. Ofereça-se como voluntário para auxiliar no que for necessário. Este serviço devocional voluntário é chamado de Seva e é essencial para manter o bom andamento das atividades. Varrer o local, limpar os metais do altar, fazer os arranjos de flores ou ajudar a servir a Prasada aos visitantes são atividades que podem ser feitas por todos e não desmerecem ninguém ao fazê-lo.


No vídeo: Pujaris (sacerdotes) do Templo de MahaKaleshvara (uma das formas do Senhor Shiva) limpam o Garbha Grha (Sanctum Santorum do Templo) antes da Puja.
              



domingo, 3 de março de 2019

Maha Shiva Ratri


               O MahaShivaRatri, ou seja, “a Grande Noite de Shiva” é o maior festival anual dedicado ao Senhor Shiva. Há festivais menores celebrados mensalmente, estes são conhecidos apenas como “ShivaRatri”. Todo ShivaRatri acontece numa única noite que é a décima quarta noite (Chaturdashi) da quinzena escura (Krishna Paksha) de cada mês lunar. Esta noite precede a noite do Amavasya (Lua Negra, Lua Nova) que é o momento astrológico de conjunção da Lua (Senhor Shiva) com o Sol (Shakti, a Deusa). Este momento do ciclo lunar mensal é belamente narrado nas escrituras Pauranikas (Puranas) como o “casamento” de Shiva e Parvati que naturalmente antecede a sua “união” da noite seguinte. O MahaShivaRatri é celebrado no mês Védico de Magha.

               O festival de MahaShivaRatri é uma Naimittika Puja, ou seja, uma celebração, uma Puja, feita fora dos padrões rotineiros. Esta outra é chamada de Nitya Puja, ou seja, uma Puja de rotina. O que transforma uma data qualquer em uma data de festival é a nossa conexão, o nosso alinhamento com os motivos daquela celebração da mesma forma que a data da celebração das Bodas de Prata (25 anos de casamento) do senhor e senhora Albuquerque só são significativos para as suas famílias e amigos. É o nosso poder espiritual de consagração que torna momentos, pessoas ou objetos especiais. O festival só acontece para aqueles que agem e tornam aquele dia um dia diferente; um Guru só está presente para aqueles que consagraram um homem ou mulher comuns como representantes de Shiva e Shakti; uma estátua só deixa de ser um mero objeto de decoração e torna-se uma Murti (materialização da Divindade) entre aqueles que dedicaram a ela seu carinho especial através dos ritos prescritos.

               A maneira mais simples de festejar o MahaShivaRatri é recitar o Panchakshara Mantra (Mantra de cinco silabas) do Senhor Shiva – NamaH Shivaya. Para aqueles devotos que já o fazem diariamente há a opção de aumentar o numero de repetições ou realizar as Pujas e Abhishekas que já sabem como fazer. O momento de um festival não é adequado para “testar” a realização de uma Puja ou qualquer outro procedimento que já não seja conhecido. Este aprendizado e familiarização devem ser feitos previamente em momento oportuno e sob orientação adequada.