sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Yoga e Moksha

 

 

Auto-proclamados(as) Yogues e Yoguinis abundam na Internet e não faltam opiniões pessoais, muitas vezes sem o devido embasamento, citadas como se fossem referencias escriturais. É muito fácil pegar uma palavra ou um termo escritural e copiá-lo sem ter o menor conhecimento de seu significado.  

 

Junto com a palavra “Yoga” um dos termos mais prostituidos na internet é “Moksha”. Apreciemos inicialmente seus significados e a relação entre ambos: 1. Moksha vem do verbo Sânscrito Muc/Mokshyati e significa desamarrar, libertar. 2. Já a palavra Yoga vêm do verbo Yuj/Yojate cujo significado é atrelar, colocar sob jugo.

 

Pois bem, salta aos olhos o aparente paradoxo destes termos geralmente usados em conjunto e até mesmo dentro de uma mesma referencia escritural. Nos textos o Yoga nos é apresentado como uma etapa prévia ou um processo, uma metodologia à ser seguida para a obtenção de Moksha – a Libertação Final.

 

Mas, como poderia o resultado obtido ser diametralmente oposto ao caminho seguido ? Este enigma pode nos remeter aos dizeres da esfinge: “Decifra-me ou te devoro” e, talvez, a apreciação da divina suástica, um dos símbolos do Senhor Ganesha (Aquele que abre as portas para o conhecimento) possa nos ajudar em nossas reflexões.

 

Da mesma forma que as linhas de uma suástica, à principio sigam direções diferentes e, após uma mudança, destinem-se ao ponto central, o Yoga possa nos fornecer os “pré-requisitos” necessários para a obtenção de uma verdadeira Liberdade (Moksha) se houver sinceridade em nossa busca e estivermos dispostos à mudar a direção imposta pelo ego às nossas vidas.

 

Observemos, logo de inicio, que Moksha não é o destino direto do Yoga. Moksha é o ultimo dos quatro Purusharthas, ou seja, dos quatro objetivos da vida humana. Antes de Moksha há a necessidade de viver em harmonia (Dharma), ter autonomia existencial (Artha) e ter suas aspirações e legítimos desejos saciados (Kama).

 

A moda do individualismo pode tentar legitimar uma busca espiritual solitária, autista, anti-social mas não é esta a perspectiva do Dharma. Antes de seguir em suas Sadhanas ou em seu Yoga o adepto deve aprender a conviver com todos na sociedade à sua volta.

 

Como alegar progresso espiritual com um coração distante dos familiares ou do pai e da mãe que são nossos primeiros Gurus ?

 

Como afirmar “Liberdade” (Moksha) se estivermos dentro dos limites do provimento (Artha) de terceiros ou se fugimos dos parentes e colegas de trabalho por não os suportarmos ?  

 

Como se considerar “auto-realizado(a)” (em Moksha) se remoermos o recalque e a frustração de amores não vividos, abraços não recebidos e amor não partilhado (todos estes aspectos de Kama) ?

 

Está claro que Moksha não se obtém de maneira compartimentada, neurótica, autista, mas que esta (auto)realização está repleta de desafios, batalhas e aflições pessoais.

 

A alegação de buscar Moksha por parte daqueles que não realizam nenhum esforço para obter Yoga é, no mínimo, imatura. As metas iniciais da jornada espiritual não são cultivo do ego nem tampouco caprichos em busca de honrarias. As metas iniciais, ou seja, a obtenção de Dharma, Artha e Kama são essenciais para que a busca de Moksha não seja apenas uma fuga covarde do mundo real.

 

A verdadeira espiritualidade não é uma desculpa de fugitivos do mundo, nem uma justificativa para fracassados. A realização de Moksha é a coroação de uma vida plena e bem vivida. Celebrada em cada momento especial, que é como um “Festival” (Utsava) para a alma. (Re)Encontrar o Guru de sua vida, carregar tijolo por tijolo para a construção de algo que será deixado para a posteridade, viajar para lugares distantes pelo simples prazer de recitar o mesmo Mantra de sempre (Diksha Mantra) num local diferente são aspectos da alma que vibra em Aishvarya (capacidade de agir), que se move em Vairagya (desapego e bravura até diante de seus próprios temores internos) e que caminha em direção de Jñana (conhecimento). Os mortos apenas permanecem deitados até que o sopro divino lhes toque o coração.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Satmya

Sātmya 

Namaste,

Já temos tratado, à algum tempo, da questão do ritmo pessoal no progresso nas Sadhanas. Há Sadhakas que vão pouco à pouco se aventurando nesta jornada espiritual enquanto outros avançam rapidamente. Poderíamos afirmar com sobriedade que haveria uma atitude “melhor” do que a outra ? Certamente não ! Uma jornada espiritual não é um “curso” nem um “seminário”, ela não tem conteúdo programado nem tampouco provas de nivelamento para “atingir” uma turma mais adiantada. Tudo ali funciona de forma orgânica e natural tal qual a brincadeira de crianças num jardim.

 

Este ritmo natural, pessoal, saudável é chamado de Satmya – a linearidade que permite que nos reconheçamos numa linha de tempo. Tomemos um exemplo: embora hoje sejamos diferentes de quando éramos crianças há uma continuidade de experiências que vão se somando e que possibilitam nos identificar como um único individuo passando por sucessivas transformações ao invés de nos ver como distintos indivíduos não-conectados entre si. Esta consciência de continuidade é originada em Satmya.

 

O respeito à Satmya é essencial à continuidade harmônica de um individuo, de uma linhagem familiar ou de uma sociedade. No Ayurveda bem aplicado há este respeito para com a estrutura vigente do individuo e suas rotinas e cada nova mudança na dieta ou estilo de vida é apresentada de forma suave e equilibrada.

 

Nas disciplinas espirituais dos Tantras não poderia ser diferente. Cada um tem seu próprio tempo para que o Mantra amadureça em sua mente e as profundas transformações possam surgir de dentro para fora. A eventual tentativa de romper com esta naturalidade é chamada de Jñana Aparadha – Ofensa à Sabedoria, e alguns sintomas podem ser observados diante desta ocorrência.

 

Ao tentar romper com o anterior ritmo saudável a parte mais frágil da estrutura psíquica, ou seja, aquela que pode imaginar-se descontinuada – o Ahamkara ou “ego” – tentará certamente se proteger. Esta reação do ego se mobiliza através de várias estratégias que podem apresentar-se de forma simultânea ou sucessiva: a. negação das experiências vividas; b. fragmentação da tradição (Sampradaya) ou c. simples abandono da Sadhana. Vejamos cada uma em detalhes.

 

A possibilidade de uma intensa experiência pessoal na transmissão de um Mantra, mesmo que prazerosa, pode ser sentida como uma ameaça à rotina previamente bem estabelecida do Sadhaka. Isso pode levá-lo à negação e/ou “esquecimento” do que viveu de forma à retornar ao mesmo ponto anterior sem eventuais sentimentos de “culpa”.

 

A tentativa de fragmentação da tradição ocorre quando o Sadhaka ancora as experiências vividas porém recusa-se á um progresso continuado. O ego então passa à julgar e configurar a tradição de forma á satisfazer sua concepção de mundo. Surgem frases como “o Mantra eu faço mas isso ou aquilo eu não aceito ...”, “quero fazer tais práticas mas não vejo utilidade na preparação prescrita” etc.

 

Caso as estratégias anteriores não se mostrem viáveis resta ao ego temeroso da intensidade das experiências vindouras ou indisposto ao peso de novos compromissos a alternativa de simplesmente abandonar a jornada nesta vida.

 

Chega então o momento de refletir diante destas possibilidades e uma sólida base escritural pode nos ajudar nesta reflexão. Os Kaula Tantras afirmam que após sucessivas reencarnações a alma individual amadurece para as experiências deste Dharma. Essa é uma jornada de muitas vidas e certamente vários Sadhakas de hoje já trilharam este caminho anteriormente.

 

Diante disso podemos estabelecer uma linha de ação adequada:

a.      Amar e acolher sempre. Respeitando as diferenças de estilo, “temperamento” e disponibilidade de cada um.

b.     Ensinar sempre de acordo com aquilo que é perguntado, ou seja, sem pressupor “saber mais”. Num dialogo cada pergunta revela muito mais sobre o preparo do aluno do que sobre o conhecimento do professor.

c.      Proteger sempre. Cada família espiritual é uma linhagem de conhecimento e de amor e, da mesma forma que nas famílias sanguíneas, cabe aos mais preparados tomar a frente e orar pelos irmãos mais jovens no caminho.

d.     Partilhar sempre. Cada desfrute e até mesmo pequenas alegrias que temos em vida vem de nossos méritos espirituais adquiridos através da correta ação. Que possamos inspirar aqueles á nossa volta no caminho da retidão.

e.      Servir sempre. É pelo serviço desinteressado oferecido através de nossas aptidões que acumulamos mais rapidamente méritos espirituais.

 

O Tântrico ensina para proteger, protege para partilhar, partilha para servir e serve através de seus ensinamentos.

 

Jaya Ma.