domingo, 5 de junho de 2022

Kaula Tantra, Trika e Krama

 

Namaste,

 

               Há interesse em certos aspectos acadêmicos da relação entre o Kaula Dharma e as antigas escolas Trika (“Tríplice”) e Krama (“Método Sucessivo”) costumeiramente associadas ao “Shivaismo da Caxemira”. Bem, tentaremos abordar este tema com brevidade porém de modo suficiente apenas para posicionar os Kaulika Sadhakas (adeptos do Kaula Dharma) numa visão geral destas tradições.

 

               O Sadhaka é aquele que estuda o Dharma não para escrever uma tese mas sim para obter Moksha, a Libertação Final, ou seja, há nele(a) uma perspectiva prática na apreciação dos Tantras e suas escolas. Essa é a perspectiva que valorizaremos em nosso comentário. Sob este ponto de vista, do iniciado, os Tantras não são meros escritos mas sim textos revelados pelo próprio Senhor Deus Shiva. Isso nos convida à uma apreciação do caráter sagrado e atemporal das escrituras e, portanto, exige algum preparo para lidar com seus aspectos mais herméticos.

 

               Essa apreciação, em plenitude, naturalmente será mais provável entre aqueles que praticam os Vidhi-s (injunções, ou seja, o que é prescrito) nestes textos. Essa continuidade histórica entre os praticantes de determinadas disciplinas espirituais é chamada de Parampara (Linhagem Espiritual) e é nela que devemos buscar uma sensata compreensão de vários aspectos do cotidiano do adepto.

 

               Bem, tendo em vista a importância do Parampara que detalha e orienta sobre estas tradições vamos iniciar nosso pequeno estudo pelo comentário do sábio Tantriko AbhinavaGupta à respeito da relação entre as escolas Trika e Krama. Para ele o sistema Krama era o aspecto mais esotérico dos ensinamentos da escola Trika. Mas, o que exatamente ensinavam estas escolas ?

 

               A escola Trika é assim chamada devido à sua perspectiva do aspecto tríplice da Deusa como 1. Parapara (Aquela que é Suprema), 2. Para (Aquela que está “além”) e 3. Apara (Aquela que não está “além”). Já a escola Krama é conhecida pelo seu método de iniciação através das “12 Kalis” onde a Mãe Divina, ali uma personificação do Sol, atravessa doze diferentes estágios/signos para completar seu ciclo. Por isso essa escola também é conhecida como Bhanavi Krama (Método das Sucessões Solares). De maneira análoga esta jornada também é apreciada pela alma encarnada como uma narrativa de sua busca pela Libertação Final.

 

               Os sábios Tantrikos, mesmo antes de AbhinavaGupta, já elucidavam a metodologia Krama como o eterno e constante fluxo da Consciência através de doze diferentes estágios. As luminosas formas descritas ali eram chamadas de MarichiDevata ou RashmiDevata, ou seja, Devas ardentes ou brilhantes (tal qual o Sol). O Chakra ou Mandala (circulo ou conjunto) destas formas é o Prakasha Chakra – o Circulo que brilha.

 

               Qual seria a aplicação deste sistema para a obtenção de Moksha ? Conforme já anteriormente afirmado nos Vedas a Libertação Final não pode ser obtida por nenhuma ação. Desta forma também a escola Krama não preconizava ações especificas mas sim a prazerosa percepção (Amrta Krama) de que a consciência individual reflete (Vimarsha) o brilho (Prakasha) da consciência Divina. Esta percepção, esta vivência, essa tomada de consciência é descrita no tratado “Ishvara PratyabhiJña Karika” (Os Axiomas de Reconhecimento do Senhor Deus) escrito pelo genial sábio Tantriko UtPalaDeva.

 

               Ora, Shiva Krpa, a misericórdia do Senhor Shiva, é eterna e sempre atuante. Ela nunca estará ausente na Criação, no Universo. Devido à esta misericórdia os Tantras foram revelados no Kali Yuga (Era da Discórdia) quando as disciplinas prescritas nos Vedas tornam-se difíceis de ser realizadas. Diante desta Verdade (Sat) que é parte dos três atributos da Divindade (Sat, Chit e Ananda) podemos afirmar que o Trika e o Krama não estão absolutamente extintos mas foram preservados pelo Senhor em outras de suas revelações.

 

               Chegamos, então, ao ponto de apreciarmos o Kaula Tantra como continuador das Verdades reveladas nos Vedas assim como dos métodos praticados em outras escolas Tantrikas. Diz o Kularnava Tantra:

 

यथा हस्तिपदे लीनम् सर्वप्राणीपदं भवेत्

दर्शनानि सर्वाणि कुल एव तथा प्रिये॥ १३॥

yathā hastipade līnam sarvaprāṇīpadaṁ bhavet  |

darśhanāni cha sarvāṇi kula eva tathā priye || 13 ||

 

“Oh Minha Querida, da mesma forma que as pegadas de todos os seres vivos desaparecem dentro da pegada de um elefante, os seis Darshanas (Samkhya e Yoga; Nyaya e Vaisheshika; Purva Mimamsa e Uttara Mimamsa (Vedanta)) e todos os demais desaparecem com certeza no Kaula Dharma.”

Kularnava Tantra, capitulo II, verso 13

 

               Portanto observemos que o prazeroso reconhecimento da unidade entre as Consciências Divina e Humana estão presentes como Siddhi obtido em Kaula Sadhanas. Não são doze também os Mantras de Kali diretamente revelados no MahaNirvana Tantra ? A Deusa também não é descrita como Tríplice nos Rahasyams (Segredos) da escritura Chandi Patha recitada regularmente pelos iniciados ?

 

               Da mesma maneira que Agni (Deus Fogo) não entrega Dravya (oferendas) aos demais Deuses se estas forem oferecidas nas cinzas apagadas, o adepto não torna-se Siddha (Bem sucedido) se buscar realização sem linearidade de transmissão. É a misericórdia de Shiva, o Primeiro Guru, que permite que ainda haja Gurus vivos no Kali Yuga. Guru morto não transmite Mantras.

 

Que Mãe Kali nos proteja sempre.