segunda-feira, 3 de junho de 2013

Kaula Tantra - a essência do Samayachara





Tendo em vista o crescente interesse que a tradição Kaula do Tantra tem despertado é oportuno esclarecer alguns pontos que passam despercebidos ao olhar do não-iniciado. Em geral, o leigo não possui o conhecimento e nem a vivência para comentar sobre aspectos mais sofisticados da tradição e acaba se perdendo na repetição de comentários sem base que, muitas vezes, nem se conhece a origem. Em outras situações corre-se o risco de chegar à conclusões à partir de rumores sem fundamento.

O Kaula Tantra é focado na prática de suas disciplinas e não na mera especulação filosófica, muito embora sua ampla produção literária seja repleta de argumentação consistente para aqueles que se interessam neste tipo de abordagem. Devido ao caráter prático de suas disciplinas é conveniente que alguém que viva estas práticas deva comentar e esclarecer evitando assim que interpretações errôneas surjam e se disseminem.


Tópico 1: O Kaula Tantra é o mesmo que Vama Tantra  ?

Não, Kaula não é sinônimo de Vama. O Kularnava Tantra (cap. II, versos 7 e 8) afirma que existem sete caminhos espirituais (Acharas) que se inter-relacionam e se complementam. Sobre estes Swami Satyananda Saraswati comenta:
1. Vaishnavacara significa encontre sua inspiração.
2. Vedikacara significa aprenda sobre aquilo que você ama.
3. Shaivacara significa pratique aquilo que você aprendeu.
4. Vamacara significa "comportamento adorável", realizando cada ação na vida de forma eficiente.
5. Dakshinacara significa "caminho preferido" , reduzindo nossa necessidade de realizar ações mundanas.
6. Siddhantacara significa tornar nosso comportamento correspondente às atividades descritas nas escrituras.
7. Kulacara significa "comportamento de excelência": quando ao sentar-se tranqüilo em meditação ou tentar ativamente alcançar algum objetivo, a atitude perante a vida continua a mesma em qualquer circunstância.


Tópico 2: As práticas do Vama Achara (caminho da mão esquerda) envolvem o uso de carne bovina ou drogas?

O Vama Achara é considerado um Dharma e, portanto, não se opõe às injunções estabelecidas nos Vedas. Não há consumo de carne bovina em nenhuma prática deste Achara, este consumo é proibido pelos próprios Tantras (MahaNirvana Tantra cap. VI). Um suposto consumo de drogas ilícitas também não têm nenhum respaldo quer entre os Gurus ou nas escrituras.


Tópico 3: As práticas do Kaula Tantra são focadas no Muladhara Chakra (Chakra raiz) ?

O leitor dos Tantras que tenha alguma familiaridade com o assunto observará o grande numero de práticas mentais que devem ser realizadas enquanto procedimentos no plano físico, aparentemente simples, são executados. Um dos primeiros procedimentos à serem feitos antes de qualquer disciplina é o BhutaShuddhi – a purificação dos elementos e de TODOS os Chakras. Neste procedimento os Nadis (canais de energia) são purificados para facilitar a posterior ascensão de Kundalini. A prática é descrita no MahaNirvana Tantra cap. V. Em vários momentos o Kularnava Tantra afirma que a meditação no Guru é feita no Sahasrara Chakra (Chakra das mil pétalas no alto da cabeça). Cada procedimento especifico têm foco em um dos sete Chakras sendo que alguns como o Samanyarghya envolvem três Chakras diferentes.


Cabe aqui comentar a origem desta desinformação sobre as disciplinas espirituais dos Kaula-s. Na Idade Média houve um Tantriko chamado LakshmiDhara que tentou reformar as práticas descritas nas escrituras, segundo sua opinião a única prática digna era a adoração ao Shri Yantra. Muitos de seus pontos de vista não são apoiados por nenhuma autoridade e têm sua referência apenas no próprio LakshmiDhara. Vários Tantrikos posteriores esclareceram a natureza das práticas e derrubaram os pontos de vista deste reformador, demonstrando que as criticas apresentadas não tinham nenhum fundamento. Entre eles temos Bhaskararaya (comentário ao Tripura Upanishad e outros), HariHarananda Saraswati (comentário ao MahaNirvana Tantra e ao Kularnava Tantra), Tarkalamkara (comentário ao MahaNirvana Tantra), Sir John Woodroffe (autor do “Principles of Tantra”), MahiDhara (autor do Mantra MahoDadhi) entre os autores clássicos e prof. Koshalya Walli (autora do “Tantrakoka and Cultural Heritage”) Mark Dyczkowski (autor do “Canon of Shaivagama ...”) entre os contemporâneos.

Na edição da escritura Tantrika “Saundarya Lahari” (que foi comentada por LakshmiDhara) publicada pelo Shri RamaKrishna Math os eruditos desta instituição afirmam: “É claro que os Kaulas, como LakshmiDhara afirmava, não se consideram adorando Kundalini adormecida no Muladhara, mas sim como adoradores de Shakti que buscam unir Kundalini à Shiva no Sahasrara Chakra ...”. Mais à frente: “O objetivo dos Kaulas também é Moksha da mesma forma que os Samayins, apesar de existirem diferenças nas Sadhanas”.

Ainda na introdução à esta obra os eruditos comentam: “De acordo com LakshmiDhara os Kaulas negligenciam Shiva e se concentram em Shakti enquando os seguidores do Samaya dão importância à ambos. Nos escritos de Sir John Woodroffe sobre a filosofia e práticas Shakta, assim como nas escrituras Tantrikas dos Kaulas, tanto Shiva quanto Shakti tem seu lugar”.... “se fosse de outra forma seria apenas Shivaismo ou Vaishnavismo nos quais Shakti é apenas um acessório à Deidade” ... “Portanto a posição Kaula de dominância de Shakti em seu culto é de muita relevância”.

Mais à frente o texto do Shri RamaKrishna Math afirma: “Um outro contraste feito entre o Samaya e o Kaula é que o primeiro é pura adoração interna enquanto o segundo é pura adoração externa. Isto é um equivoco. Nem os Samayas são adoradores puramente internos nem os Kaulas são adoradores puramente externos” ... “aqueles que se proclamam Samayas fazem adoração ao Shri Yantra desenhado externamente.”  ...  “Entre os Kaulas a adoração é dividida em três níveis – Pashu, Vira e Divya ... A classe mais elevada de Kaulas, o Divya ou Divino, só pratica adoração interna de Shakti através da meditação”.... “Em ambas as escolas o nível mais elevado é de adoradores internos enquanto que nos estágios iniciais, em ambas as escolas, há adoradores externos”.

No parágrafo seguinte: “Deve ser observado que os Kaulas são sempre criticados e denegridos por LakshmiDhara como aqueles envoltos com adoração à Kundalini adormecida no Muladhara. Porém ele se contradiz quando descreve que os próprios Samayas adoram Kundalini adormecida nos estágios iniciais de sua prática” ... “tanto os Samayas quanto os Kaulas fazem adoração de Devi passo à passo desde o Muladhara até o Chakra mais elevado.” A introdução finaliza com: “As criticas de LakshmiDhara às outras escolas é preconceituosa e muito tendenciosa”.

Referências escriturais:
“Kularnava Tantra” edição verso por verso de Prachya Prakashan;
“KaulaJñanaNirnaya” edição de Pandit Satkari Mukhopadhyaya e Stella Dupuis:
“MahaNirvana Tantra” edição de 1971 de Ganesh & Co. Private;
“Mantra MahoDadhi” de Shri SatGuru publications:
“Saundarya Lahari” de Shankaracharya publicado pelo Shri RamaKrishna Math.