Tendo em vista o crescente interesse que a tradição Kaula do
Tantra tem despertado é oportuno esclarecer alguns pontos que passam
despercebidos ao olhar do não-iniciado. Em geral, o leigo não possui o
conhecimento e nem a vivência para comentar sobre aspectos mais sofisticados da
tradição e acaba se perdendo na repetição de comentários sem base que, muitas
vezes, nem se conhece a origem. Em outras situações corre-se o risco de chegar
à conclusões à partir de rumores sem fundamento.
O Kaula Tantra é focado na prática de suas disciplinas e não
na mera especulação filosófica, muito embora sua ampla produção literária seja
repleta de argumentação consistente para aqueles que se interessam neste tipo
de abordagem. Devido ao caráter prático de suas disciplinas é conveniente que
alguém que viva estas práticas deva comentar e esclarecer evitando assim que
interpretações errôneas surjam e se disseminem.
Tópico 1: O Kaula Tantra é o mesmo que Vama Tantra ?
Não, Kaula não é sinônimo de Vama. O Kularnava Tantra (cap.
II, versos 7 e 8) afirma que existem sete caminhos espirituais (Acharas) que se
inter-relacionam e se complementam. Sobre estes Swami Satyananda Saraswati
comenta:
1. Vaishnavacara significa encontre sua inspiração.
2. Vedikacara significa aprenda sobre aquilo que você ama.
3. Shaivacara significa pratique aquilo que você aprendeu.
4. Vamacara significa "comportamento adorável", realizando cada
ação na vida de forma eficiente.
5. Dakshinacara significa "caminho preferido" , reduzindo nossa
necessidade de realizar ações mundanas.
6. Siddhantacara significa tornar nosso comportamento correspondente às
atividades descritas nas escrituras.
7. Kulacara significa "comportamento de excelência": quando ao
sentar-se tranqüilo em meditação ou tentar ativamente alcançar algum objetivo,
a atitude perante a vida continua a mesma em qualquer circunstância.
Tópico 2: As práticas do Vama Achara (caminho da mão esquerda) envolvem o
uso de carne bovina ou drogas?
O Vama Achara é considerado um Dharma e, portanto, não se opõe às
injunções estabelecidas nos Vedas. Não há consumo de carne bovina em nenhuma
prática deste Achara, este consumo é proibido pelos próprios Tantras
(MahaNirvana Tantra cap. VI). Um suposto consumo de drogas ilícitas também não
têm nenhum respaldo quer entre os Gurus ou nas escrituras.
Tópico 3: As práticas do Kaula Tantra são focadas no Muladhara Chakra
(Chakra raiz) ?
O leitor dos Tantras que tenha alguma familiaridade com o assunto
observará o grande numero de práticas mentais que devem ser realizadas enquanto
procedimentos no plano físico, aparentemente simples, são executados. Um dos
primeiros procedimentos à serem feitos antes de qualquer disciplina é o
BhutaShuddhi – a purificação dos elementos e de TODOS os Chakras. Neste
procedimento os Nadis (canais de energia) são purificados para facilitar a
posterior ascensão de Kundalini. A prática é descrita no MahaNirvana Tantra
cap. V. Em vários momentos o Kularnava Tantra afirma que a meditação no Guru é
feita no Sahasrara Chakra (Chakra das mil pétalas no alto da cabeça). Cada
procedimento especifico têm foco em um dos sete Chakras sendo que alguns como o
Samanyarghya envolvem três Chakras diferentes.
Cabe aqui comentar a origem desta desinformação sobre as disciplinas
espirituais dos Kaula-s. Na Idade Média houve um Tantriko chamado LakshmiDhara que
tentou reformar as práticas descritas nas escrituras, segundo sua opinião
a única prática digna era a adoração ao Shri Yantra. Muitos de seus pontos de
vista não são apoiados por nenhuma autoridade e têm sua referência apenas no
próprio LakshmiDhara. Vários Tantrikos posteriores esclareceram a natureza das
práticas e derrubaram os pontos de vista deste reformador, demonstrando que as
criticas apresentadas não tinham nenhum fundamento. Entre eles temos
Bhaskararaya (comentário ao Tripura Upanishad e outros), HariHarananda
Saraswati (comentário ao MahaNirvana Tantra e ao Kularnava Tantra),
Tarkalamkara (comentário ao MahaNirvana Tantra), Sir John Woodroffe (autor do
“Principles of Tantra”), MahiDhara (autor do Mantra MahoDadhi) entre os autores
clássicos e prof. Koshalya Walli (autora do “Tantrakoka and Cultural Heritage”)
Mark Dyczkowski (autor do “Canon of Shaivagama ...”) entre os contemporâneos.
Na edição da escritura Tantrika “Saundarya Lahari” (que foi comentada por
LakshmiDhara) publicada pelo Shri RamaKrishna Math os eruditos desta
instituição afirmam: “É claro que os Kaulas, como LakshmiDhara afirmava, não se
consideram adorando Kundalini adormecida no Muladhara, mas sim como adoradores
de Shakti que buscam unir Kundalini à Shiva no Sahasrara Chakra ...”. Mais à
frente: “O objetivo dos Kaulas também é Moksha da mesma forma que os Samayins,
apesar de existirem diferenças nas Sadhanas”.
Ainda na introdução à esta obra os eruditos comentam: “De acordo com
LakshmiDhara os Kaulas negligenciam Shiva e se concentram em Shakti enquando os
seguidores do Samaya dão importância à ambos. Nos escritos de Sir John
Woodroffe sobre a filosofia e práticas Shakta, assim como nas escrituras
Tantrikas dos Kaulas, tanto Shiva quanto Shakti tem seu lugar”.... “se fosse de
outra forma seria apenas Shivaismo ou Vaishnavismo nos quais Shakti é apenas um
acessório à Deidade” ... “Portanto a posição Kaula de dominância de Shakti em
seu culto é de muita relevância”.
Mais à frente o texto do Shri RamaKrishna Math afirma: “Um outro
contraste feito entre o Samaya e o Kaula é que o primeiro é pura adoração
interna enquanto o segundo é pura adoração externa. Isto é um equivoco. Nem os
Samayas são adoradores puramente internos nem os Kaulas são adoradores
puramente externos” ... “aqueles que se proclamam Samayas fazem adoração ao
Shri Yantra desenhado externamente.”
... “Entre os Kaulas a adoração é
dividida em três níveis – Pashu, Vira e Divya ... A classe mais elevada de
Kaulas, o Divya ou Divino, só pratica adoração interna de Shakti através da
meditação”.... “Em ambas as escolas o nível mais elevado é de adoradores
internos enquanto que nos estágios iniciais, em ambas as escolas, há adoradores
externos”.
No parágrafo seguinte: “Deve ser observado que os Kaulas são sempre
criticados e denegridos por LakshmiDhara como aqueles envoltos com adoração à
Kundalini adormecida no Muladhara. Porém ele se contradiz quando descreve que
os próprios Samayas adoram Kundalini adormecida nos estágios iniciais de sua
prática” ... “tanto os Samayas quanto os Kaulas fazem adoração de Devi passo à
passo desde o Muladhara até o Chakra mais elevado.” A introdução finaliza com:
“As criticas de LakshmiDhara às outras escolas é preconceituosa e muito tendenciosa”.
Referências escriturais:
“Kularnava Tantra” edição verso por verso de Prachya Prakashan;
“KaulaJñanaNirnaya” edição de Pandit Satkari Mukhopadhyaya e Stella
Dupuis:
“MahaNirvana Tantra” edição de 1971 de Ganesh & Co. Private;
“Mantra MahoDadhi” de Shri SatGuru publications:
“Saundarya Lahari” de Shankaracharya publicado pelo Shri RamaKrishna
Math.
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