terça-feira, 1 de maio de 2012

Comentando o Kaula Upanishad (texto em construção e sob atualizações periódicas)




Tentarei enfrentar com discernimento esta difícil tarefa de comentar sobre uma Upanishad que, em geral, são textos de elaborada complexidade filosófica. No caso do Kaula Upanishad acrescenta-se o fato dele ser um texto de uso ritualístico usado por uma tradição que historicamente manteve suas práticas distantes de olhares indiscretos.

Peço licença aos Sadhakas iniciados e a linhagem de todos os Gurus para comentar sobre este tema, não para revelar práticas reservadas aos iniciados que foram preparados para realizá-las mas sim para esclarecer um tema sujeito à muita desinformação e interpretações maliciosas que são divulgadas constantemente.

Como comentado, o Kaula Upanishad é um texto ritualístico, ou seja, destinado à ser usado em momentos específicos quando determinados rituais estão sendo realizados. Isto é uma injunção, uma regra ritual, comum à várias situações. Temos por exemplo os mil nomes de Vishnu (Vishnu Sahasranama) que é recitado nas cerimônias fúnebres (vide Garuda Purana), o Argala Stotra que é obrigatoriamente recitado antes da recitação do Chandi Path, o Linga Ashtakam durante o Abhisheka (banho ritual) feito ao Shiva Linga. Este tipo de injunção é comum desde o período Védiko onde o Punyaham Vachanam (declaração de méritos) também era recitado no Upanayana Samskara, o rito de transmissão do cordão sagrado (Yajño Pavita).

No caso do Kaula Upanishad o momento ritualístico adequado é durante a realização de um Chakra Puja, que é um procedimento reservado à Sadhakas iniciados e sujeito à várias injunções contrárias à presença de não-iniciados (vide Kularnava Tantra). È neste contexto esotérico que o texto se aplica e fora dele outras injunções pertinentes são aplicadas, ou seja, ele NÃO é um texto para ditar normas de comportamento ou inspirar considerações filosóficas mas sim um texto auxiliar que é usado por alguns Kulas durante o Vandanam – o louvor às qualidades da tradição.

O texto começa com a saudação aos Sadhakas presentes e aos elementos usados no rito em questão:
शनः कौलिकः शनो वारुणी शनः शुद्धिः
शनोऽग्निश्शनः सर्वं समभवत्‌   । १।
śanaḥ kaulikaḥ śano vāruṇī śanaḥ śuddhiḥ
śano'agniśśanaḥ sarvaṁ samabhavat    | 1 |

Palavras: śanaḥ - auspicioso ; kaulikaḥ - adepto iniciado no Kaula Tantra ; vāruṇī – epiteto para vinho ; śuddhiḥ - alimentos rituais ; agniḥ - fogo ; sarvaṁ - tudo ; samabhavat – esteja harmonico, pacificado.

Tradução: “Que os iniciados Kaula sejam auspiciosos (estejam em paz), que Varuni seja auspiciosa, que o Suddhi seja auspicioso, que o fogo seja auspicioso, que tudo seja harmônico.” Kaula Upanishad verso 1.

Comentário : Este primeiro verso começa com uma reverência aos Kaulas presentes no Chakra Puja seguida por uma reverência ao vinho e aos acompanhamentos ritualísticos e termina por uma saudação ao fogo do Homa que será realizado ao final. Aqui “Varuni” (esposa do Deus Varuna – Senhor das águas primordiais) é um epíteto carinhoso dado ao vinho e “Shuddhi” refere-se aos 3 Ms que devem ser consumidos no rito. Vale comentar que o inicio “śanaḥ kaulikaḥ śano vāruṇī” apresenta muita similaridade com o primeiro verso do Shanti Path (recitação da Paz) – “Oà çano mitraù çaà varuëaù ...”

नमो ब्रह्मणे नमः पृथिव्यै नमोऽद्भ्यो
नमोऽग्नये नमो वायवे नमो गुरुभ्यः।
namo brahmaṇe namaḥ pṛthivyai namo'dbhyo
namo'gnaye namo vāyave namo gurubhyaḥ |

Palavras: namaḥ - Reverências, saudação ; brahmaṇe – à Brahman ; pṛthivyai – à Prthivi, a Terra ; adbhyo – aos itens comestíveis ; agnaye -  à Agni, o fogo ; vāyave -  à Vayu, o “Vento, a atmosfera ;  gurubhyaḥ - aos Gurus.

Tradução: “Saudação à Brahman, saudação à Terra, saudação aos itens rituais, saudação à chama espiritual, saudação à Vayu, saudação aos Gurus.”

Comentário : Este trecho começa com uma saudação à Brahman – o absoluto imanifesto. Segue com a saudação à Terra, que no rito é feita através da adoração à Adhara Shakti, à Kurma, à Ananta e à Prthivi. Então os itens rituais, chamados Kula Dravyas, são purificados e na seqüência a chama da lamparina (que têm um belo Mantra que a compara à luz espiritual - agniH jyothiH ...) e a atmosfera (antariksha) são adoradas e purificadas. Ao final todos os Gurus (Guru, ParamGuru ...) são reverenciados.  

त्वमेव प्रत्यक्षं शैवासि।
त्वामेव प्रत्यक्षं तां वदिष्यामि।
tvameva pratyakṣaṁ śaivāsi |
tvāmeva pratyakṣaṁ tāṁ vadiṣyāmi |

Palavras: tvam – você ; eva – verdadeiramente, certamente ; pratyakṣaṁ - forma visível, manifesta ;  śaiva – relativo ao Senhor Shiva ; asi – és ; tvām – de você ; tāṁ - d'Ela ; vadiṣyāmi – eu direi, eu falarei.

Tradução: “ Tu és verdadeiramente a forma manifesta do Senhor Shiva. Eu falarei de ti como certamente a manifestação d’Ela. “

Comentário : Aqui o texto identifica todo Sadhaka sentado em Chakra Puja como manifestação viva do Senhor Shiva e de Shakti, e, portanto, estabelece a indivisibilidade intrínseca entre os dois. O Kularnava Tantra reafirma este conceito e explica que a tradição é chamada de “Kaula” pois partilha práticas não-ortodoxas relacionadas à Shiva (Akula – “sem família”) com práticas ortodoxas relacionadas à manutenção da ordem social, estas ligadas à Shakti (Kula – ligada à familia).

ऋतं वदिष्यामि सत्यं वदिष्यामि।
ṛtaṁ vadiṣyāmi  | satyaṁ vadiṣyāmi |

Palavras: ṛtaṁ - sobre a ordem cósmica, a virtude ; vadiṣyāmi – eu falarei ; satyaṁ - sobre a verdade.

Tradução: “ Eu falarei sobre a virtude, eu falarei sobre a verdade. ”

Comentário : ṛtaṁ, a personificação da ordem cósmica no período Védico é evocada aqui. Seu papel na preservação do Universo é semelhante àquele desempenhado pelo Dharma – a ordem social, que quando protegido preserva o mundo e quando abandonado deixa os seres à mercê da destruição. A verdade (Satya) é filha do Dharma. O MahaNirvana Tantra em seu capitulo IV faz um louvor à verdade e à sinceridade como únicas vias de realização espiritual neste Kali Yuga onde a dissimulação e a falsidade imperam. Onde há fingimento não há Siddhi.
 
तन्मामवतु तद्वक्तारमवतु।
अवतु माम् अवतु वक्तारम्
शान्तिः शान्तिः शान्तिः।
tanmāmavatu  | tadvaktāramavatu |
avatu mām  | avatu vaktāram |
om śāntiḥ śāntiḥ śāntiḥ |

Palavras: tat – ele ; mām – à mim ; avatu – proteja ; vaktāram – ao orador, à aquele que fala .

Tradução: “ Que ele (Brahman) me proteja. Que proteja aquele que fala. Me proteja. Proteja aquele que fala. Que haja Paz, Paz, Paz. “

Comentário : Todo Upanishad se inicia com uma evocação à Paz que é recitada antes do texto. Aqui termina esta evocação do Kaula Upanishad e começa o texto propriamente dito.

अथातो धर्मजिज्ञासा    ज्ञानं बुद्धिश्च।
ज्ञानं मोक्शैककारणम्
athāto dharmajijñāsā  | jñānaṁ buddhiśca |
jñānaṁ mokśaikakāraṇam |

Palavras: athātaḥ - agora ; dharma – O Dharma, a virtude ; jijñāsā – prova, a certificação ; jñānaṁ - o conhecimento ;  buddhiḥ - o discernimento ; ca – e ; mokśa – a libertação final ; eka – identico, o mesmo que ; kāraṇam – a causa primordial.

Tradução: “Agora a prova do Dharma. O discernimento é conhecimento. O conhecimento de que a Libertação Final é idêntica à Causa Primordial.“

Comentário: A realização interna do conhecimento de Brahman, ou seja, a identificação com a Causa primordial (Brahman) leva à Libertação Final. Bhaskararaya, o grande sábio Tântrico que comentou esta Upanishad, afirma que o conhecimento de Brahman surge através do poder da reflexão sobre o Dharma.



मोक्शस्सर्वात्मतासिद्धिः।
mokśassarvātmatāsiddhiḥ |

Palavras: mokśa – a Libertação Final ; Sarva – todo, todos ; Ātman – a alma individual ; Siddhi – o poder, a capacidade, ou as realizações, o sucesso.

Tradução: “ Moksha é (a obtenção de) todas as realizações da Alma Individual. “

Comentário: A Libertação Final pode também ser entendida como a auto-realização, onde  todas as capacidades de um individuo se direcionam para a sua felicidade. Sem antagonismos internos. Uma outra compreensão é que todos os Siddhis, ou seja, o sucesso em todos os seis atos Tantrikos (Shanti, Stambhana ...) são atingidos quando a alma obtém Moksha.

अज्ञानं ज्ञानम्
ajñānaṁ jñānam |

Palavras: ajñānaṁ - o desconhecido, não-conhecimento, ignorância ; jñānam – conhecimento.

Tradução: “O desconhecido torna-se conhecimento.”

Comentário: O verbo implícito neste Sutra é “Bhu” – ser ou tornar-se. No Sânscrito a ausência de verbos na sentença implica na presença do verbo “Bhu”. Portanto o original em Sânscrito diz que aquilo que não é o conhecimento pode ser fonte do conhecimento. Aqui “ajñānaṁ” significa Prakrti – a natureza.
Um trecho semelhante é encontrado no Devi Upanishad onde a Deusa afirma: “Eu sou a própria forma de Brahman, à partir de Mim surge a natureza (Prakrti), a alma individual e o Universo” (Devi Upanishad verso 2) complementado por “Eu sou o conhecimento e a falta de conhecimento” (verso 3).

 
एषः मोक्षः।  पञ्च बन्धाः ज्ञानस्वरूपाः।
पिण्डाज्जननम्  तत्रैव मोक्षः।  एतज्ज्ञानम्
eṣaḥ mokṣaḥ |  pañca bandhāḥ jñānasvarūpāḥ |
piṇḍājjananam |  tatraiva mokṣaḥ |  etajjñānam |

Palavras: eṣaḥ  - isto ;  mokṣaḥ  - é libertação final  ; pañca bandhāḥ - a corrente com cinco, o conjunto de cinco ; jñānasvarūpāḥ - as próprias formas do conhecimento ;  piṇḍāt – à partir do Pinda, das oferendas comestíveis ;  jananam  - nascimento ; tatra – lá, sob aquelas circunstancias ; iva – semelhante à, tal qual ; etad – aqui, sob estas circunstancias ; jñānam – é conhecimento.

Tradução: “ Isto é Moksha, a libertação final. Os cinco itens rituais são a própria forma do conhecimento. Á partir das oferendas comestíveis há o nascimento. Naquelas circunstancias é como se fosse a libertação final, aqui é conhecimento. “

Comentário : Aqui temos uma explicação das condições de Moksha quando os Sadhakas estão sentados em Chakra Puja. Lá, num ambiente ritual, os cinco itens (Pancha Makara) são a própria forma do conhecimento que fazem de seus usuários os possuidores do conhecimento. Os itens comestíveis são comparados ao  piṇḍa, a oferenda que é feita aos antepassados de forma à garantir-lhes bem aventurança nos mundos superiores e um futuro nascimento sob condições auspiciosas. Naquelas condições, ou seja, dentro do Chakra Puja todos estão libertos e trazem a libertação final à seus antepassados. Isto é o conhecimento, a ciência Tantrika.


सर्वेन्द्रियाणां नयनं प्रधानम्‌।
sarvendriyāṇāṁ nayanaṁ pradhānam |

Palavras: Sarva – todo, todos ; Indriya – sentidos, órgãos dos sentidos ; Nayana – controle ; Pradhāna – o essencial, o mais importante.

Tradução: “ O controle dos sentidos é o mais importante. “

Comentário : No momento do Chakra Puja o iniciado tem um grande desafio diante de si. Ele deve controlar seus sentidos e manter o foco no objetivo do rito, no Sankalpa determinado. Muito embora haja desfrute nesta celebração à Divindade, a mente não deve vagar sem direção. Os Mantras devem estar sempre presentes, assim como os Dhyanas, as visualizações necessárias á cada passo do rito.


अन्तः शाक्तः।  बहिः शैवः।
लोके वैष्णवः।  अयमेवाचारः।
antaḥ śāktaḥ |  bahiḥ śaivaḥ |
loke vaiṣṇavaḥ |  ayamevācāraḥ |

Palavras: antaḥ - interiormente, no coração ; śāktaḥ - um adorador da Deusa ; bahiḥ - na aparência ; śaivaḥ - um adorador do Senhor Shiva ; loke -  no mundo ; vaiṣṇavaḥ - um adorador das várias formas de Vishnu ; ayam – este ; eva – verdadeiramente, certamente ; acāraḥ - caminho espiritual.

Tradução: “ No seu coração um adorador da Deusa, na aparência um Shaiva, no mundo um Vaishnava. Este certamente é o caminho espiritual. “

Comentário : No Kaula Dharma não há proselitismo religioso, não há nele a ansiedade por inúmeras conversões. O mais importante é que os Sadhakas sejam “Adhikari”, ou seja, capacitados para suas disciplinas espirituais, o mais importante é o que está no coração do adepto. Não há valor na ostentação de uma moralidade artificial. Um Kaulika encarnado pode se apresentar como um homem do mundo, um santo ou até mesmo como um louco ou um mendigo.

आत्मज्ञानान्मोक्शः।
ātmajñānānmokśaḥ |

Palavras: ātma – si-mesmo ;  jñānām – o conhecimento ; mokśaḥ - a libertação final.

Tradução: “ O conhecimento de Si-mesmo é a libertação final. ”

Comentário: Muitos acreditam que seus apegos e aversões são a sua verdadeira essência, entretanto para o Tantra este é apenas um aspecto superficial que encobre a verdadeiro Ser onde encontra-se Sat, a verdade, Cit, a consciência e Ananda, a bem-aventurança. Mergulhar nas profundezas de seu próprio ser através das disciplinas Tantrikas é o caminho para esta descoberta.

लोकान्न निन्द्यात्  इत्यध्यात्मम्
lokānna nindyāt |  ityadhyātmam |

Palavras: lokān – os mundos ; na – não ; nindyāt – deveria censurar ou repreender ; iti – pois ; adhyātmam – o supremo espirito, Brahman.

Tradução: “ Não deveria censurar as coisas dos mundos pois (elas) são Brahman. ”

Comentário: Swami Satyananda define o caminho Kaula como: “comportamento de excelência - quando ao sentar-se tranquilo em meditação ou tentar ativamente alcançar algum objetivo, a atitude perante a vida continua a mesma em qualquer circunstância”, desta forma, o adepto Kaula deveria estar acima de seus apegos e aversões e apenas contemplar as coisas do mundo sem almejar os frutos de suas ações.

व्रतं न चरेत्
vrataṁ na caret |

Palavras: vrataṁ - Voto ou austeridade ; na – não ; caret – deveria seguir, sendo o modo Potencial do verbo “Car” – seguir, ir.

Tradução: “(Ele) não deveria seguir votos”.

Comentário: A frase “não siga votos” ou “austeridades” se refere à votos ou austeridades fartamente descritos nos Puranas onde há a obrigatoriedade do jejum. Estes votos são feitos no intuito de obter a realização de algum desejo e, portanto, implicam em apego às coisas deste mundo, o que não é apropriado àqueles que buscam Moksha – a libertação final. O jejum é explicitamente contra-indicado no MahaNirvana Tantra, especialmente aos Sadhakas envolvidos em adoração com Pancha Makara.

न तिष्ठेन्नियमेन।
na tiṣṭhenniyamena |

Palavras: na – não ; tiṣṭhet – deveria permanescer, sendo o Potencial do verbo “Stha” – permanescer ; niyamena – através dos Niyamas, em Niyamas.

Tradução: “(Ele) não deveria permanescer em Niyamas”

Comentário: Niyama é um termo comum no Yoga, ele se refere à determinadas disciplinas  que visam condicionar o corpo e o espirito. Neste Sutra o significado mais apropriado seria “não permaneça (indefinidamente) em Niyamas. Há um momento nos ritos onde a espontaneidade, evocada pela presença da Divindade, se torna mandatória. À partir dali não há mais regras a serem seguidas pois toda a ação está ancorada na identificação com o Divino.


(ESTE COMENTÀRIO AINDA NÃO ESTÁ TERMINADO)

Que Mãe Kali nos abençoe

Templo de Kali
Rudrananda Saraswati












3 comentários:

Marco Borgerth disse...

Grande post, Rudra! Parabéns pelo blog!

Rudrananda Saraswati disse...

Muito grato por sua apreciação.

Ricardo Baldersallus disse...

Obrigado pelo trabalho de tradução e comentários. Tenha certeza que será muito profícuo para nós.