quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Ambos: Aptidão Ritual & Devoção









 Por que o Tantra estima a prática de Pujas e Homas (rituais de adoração), Vratas (votos auspiciosos) e a meditação direcionada ? Qual seria o papel destes elementos na realização dos quatro objetivos da vida humana, os Purusharthas, que significam: viver em Dharma, ter Artha (os meios de sustento digno), realizar Kama (nossas aspirações estéticas e desejos) e obter Moksha (a Liberação final).

Talvez uma narrativa bem conhecida, aquela do casamento do Senhor Shiva, possa nos ajudar à compreender melhor os Tantras, sob a ótica da  iniciação, diferenciada do olhar superficial. Uma ótica que se aprofunda e busca interpretar os elementos dentro da vasta tradição á qual pertencem.

Diz a lenda que havia um grande sábio chamado Daksha, que teve muitas filhas de sua união com Aditi. Aconteceu que Daksha havia preparado uma de suas filhas, chamada Sati, para o casamento e, em grande celebração, faria um imenso Yajña, um grande sacrifico auspicioso. Todos as Deidades e seres celestiais haviam sido convidados para receber a Prasada, o banquete, que seria servida após o rito. Entretanto, quando Daksha viu o noivo escolhido, Shiva, ele se recusou a entregar sua filha. Aquela figura à sua frente parecia desprezível, um homem coberto de cinzas do campo crematório, sem jóias ou ornamentos valiosos, apenas serpentes e sementes de Rudraksha estavam sobre seu corpo. Então, ao ver seu noivo humilhado diante da assembléia dos Deuses, Sati se desesperou e se jogou nas chamas do Yajña, da cerimonia de fogo, que estava sendo realizada. Shiva ao ver sua amada em chamas, retirou o corpo do fogo e, enlouquecido, correu por todo o Universo. A ordem cósmica tornou-se então em Caos, não havia mais harmonia e toda a criação ameaçava entrar em colapso. Foi o gesto providencial de Vishnu, cortando o corpo de Sati em 51 pedaços, que permitiu que Shiva pudesse se acalmar, quando já não havia mais nada o que carregar.

Vamos comentar alguns elementos da simbologia por trás da narrativa, à começar pelos nomes em Sânscrito que revelam muitos detalhes preciosos. Daksha significa “aptidão ritual”, “expertise”. Ele é um dos doze Adityas, os Principios Soberanos. Estes Adityas são sempre representados ao pares conforme sua atuação no mundo dos homens ou no mundo dos Deuses. Temos então Mitra e Varuna – a solidariedade entre os homens (Mitra) ou entre os homens e Deuses (Varuna). Aryaman e Daksha – as regras do bom convívio, entre os homens (Aryaman, a nobreza de espirito) e entre os homens e Deuses (Daksha, as regras e aptidões rituais). Bhaga e Amsha – aquilo que é recebido, dos outros homens (Bhaga, a herança, a tradição) ou dos Deuses (Amsha, a graça Divina, a benção). Estes seis são os seis Grandes Principios Soberanos, todos filhos da Deusa Aditi, Aquela que não tem divisões, é vasta, ampla. Em Sânscrito “A” – não, “Diti” – divisão, partição. Observemos que a narrativa começa á tomar novos contornos, não é mesmo ?

Pois vejamos, a aptidão ritual (Daksha) unida à vastidão da natureza (Aditi) deu origem à filhas, à Shaktis, à energias espirituais. É durante as Pujas, os Vratas, Homas e outras práticas Tantrikas que estas energias espirituais são geradas e então, através do Sankalpa previamente informado, são dirigidas ao seu destino, ao seu “matrimonio”. Diz-se que das muitas “filhas” da aptidão ritual (Daksha), 27 se casaram com Chandra Deva, o Deus Lua, que representa a mente na Astrologia Védica. Ou seja, muitas Shaktis, muitas forças espirituais, geradas pelo rito são entregues à Mente para que as controle. Sati é uma destas Shaktis, a mais elevada. Seu nome é a forma feminina de “Sat”, a verdade, em Sânscrito. A negativa de Daksha em aceitar o matrimonio é a negativa comum de não perceber a riqueza espiritual nas coisas mais simples, Shiva, a Consciência que tudo observa, que lhe pareceu indigno para uma “filha” tão bem criada, tão bem "cultivada".

Esta narrativa se encontra nos Puranas, num período histórico em que os poderosos ritos Védicos estavam sendo gradualmente abandonados em favor de práticas menos elaborados que exigem menos recursos, menos tempo e .... menos preparo – menos aptidão ritual. Esta aptidão passava à ser depreciada em favor de Bhakti, da devoção, que veio à se tornar uma das vias preferenciais para o contato com a Divindade. Aos poucos os elementos, valores e práticas de uma Era vão sendo substituídos por outras do novo tempo que se anuncia. Temos então a sequência das Eras desde o Satya Yuga, quando o Dharma era pleno e protegia à todo o Universo, passando pelo Treta Yuga, o Dvarapa Yuga, quando o Dharma já estava reduzido à metade até o Kali Yuga, quando resta apenas um quarto de Dharma, de ordem cósmica, no Universo.

Os Tantras se apresentam como o caminho espiritual do Kali Yuga, da Era na qual estamos vivendo. Eles são, portanto, os continuadores da tradição Védica adaptados para um novo periodo histórico onde os homens já não mais dispõem dos recursos naturais, humanos e espirituais necessárias à correta prática dos Vedas. O adepto Tantriko, o Kaulika, reflete sobre esta narrativa e busca manter em suas disciplinas espirituais tanto a aptidão ritual que faz dele um Sadhu, um praticante eficiente, quanto a doce devoção que o leva à união com a Consciência que tudo observa. A palavra Kaula em Sânscito vem dos conceitos de Kula e Akula, ou seja, daquilo que é “familiar” e observa as regras e métodos adequados para alcançar cada objetivo quanto daquilo que é “desapegado” que desfruta da contemplação mística. Jaya Maa !

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