“Kala” é uma palavra em Sânscrito e naquela língua existem
diferenças entre vogais curtas e vogais longas. Estas diferenças pode gerar
terríveis mal-entendidos pois estaríamos falando de coisas diferentes apesar de
que, na escrita em caracteres Ocidentais, elas pareceriam as mesmas. Para
esclarecer podemos usar um exemplo em Português onde “coco”(fruta) é
completamente diferente de “cocô” (fezes). Neste ensaio falaremos sobre “Kalā”,
um pedaço, uma caracteristica ou pequena parte de algo. Esta palavra nada têm à ver com “Kāla” que
significa tempo. Este primeiro esclarecimento é muito relevante para o
estudioso sério dos Tantras pois estas duas palavras e seus conceitos
associados são totalmente distintos.
O estudo das Kalās é alvo de muita deturpação e absurdos e
neste momento se tornou mandatório comentar sobre o termo com mais propriedade.
Lembremos as linhas expressas pelo Kaula Jñana Nirnaya Tantra no capitulo sete,
versos 26 à 29, onde se lê:
“ Apenas um Kaulika deveria realizar estes atos. Sem o
conhecimento das escrituras Kaula, sem um Guru Kaula, sem um Mantra Kaula e sem
Shiva, o agente é um Pashu. Não se deve realizar (os ritos Kaula) à não ser
que tenha domínio sobre os Kula Agamas. “
“ A pessoa desonesta que finge ser um Natha ou um Kaulika
está iludida, e por ser ignorante (dos vários detalhes) acabará por ser
destruída, certamente será destruída. Ele se torna fracassado, confuso,
paralisado, doente e caído. ”
Muitas das disciplinas espirituais (Sadhanas) propostas
pelos Tantras visam trazer à tona e reduzir os aspectos inerciais e (auto)destrutivos
(Tamasikos) da mente. Isto é feito através de procedimentos que aumentam as
qualidades Rajasikas, que correspondem às forças dinâmicas e criativas. Após
este estágio o iniciado pode então estabelecer-se nas puras vibrações Sattvikas
de harmonia. Entretanto aqueles aventureiros que se lançam á certas Sadhanas
sem a devida orientação acabam se vendo inundados de energia criativa, e se
sentem como se fossem verdadeiros gênios. Uma observação mais atenta revelará
que eles estão apenas muitos confusos e deslumbrados, expressando
constantemente conteúdos sem consistência. Numa análise de Ayurveda se diria
que suas mentes estariam com Vata agravado. Todos estes riscos podem ser
devidamente evitados ao seguir os procedimentos do modo tradicional e sob
orientação adequada.
O Sadhaka iniciado evoca as Kalas diariamente em suas
disciplinas, as três primeiras estão associadas às três "luminárias": a Lua, o
Fogo e o Sol. Estas três são frequentemente mencionadas na literatura Tantrika
e possuem significados distintos em vários níveis de interpretação. Por exemplo, ao
estabelecer o Samanyarghya, as águas que serão usadas durante o rito principal,
o Fogo é representado no Yantra desenhado sobre o granito, o Sol está na
Kalasha e a Lua é o liquido derramado. Esta instalação será usada para todas as oferendas
liquidas para as Deidades durante uma Puja. Há ainda um significado interno: o
“Fogo” personifica o Muladhara Chakra do iniciado e Kundalini ali adormecida, o
Sol é seu Anahata Chakra e sua identidade, seu Ahamkara, a Lua personifica o
Ajña Chakra e o néctar da imortalidade (Amrta) que flui à partir de lá.
Observamos que por trás de um rito aparentemente simples, realizado externamente,
como instalar o Samanyarghya com as águas da Puja, existe uma simbologia internalizada e muito
sofisticada. O iniciado está ali trabalhando simbolicamente com aspectos muito
profundos de sua Psique. O Samanyarghya instalado é um reflexo dele mesmo que
passa então à se “trabalhar” de uma forma representativa e dramática. As três luminárias possuem ainda
significados mais sutis. Sir John Woodroffe em seu “Garland of Letters” no
capitulo sobre “o Sol, a Lua e o Fogo” diz: “ Aqui está o alicerce do jogo
secreto praticado entre Shiva e Shakti
como Lua, Fogo e Sol, que é a união de ambos. Daqui procede o Universo de Nomes
e Formas. “ Mark Dyczkowski, da Universidade de Nova Iorque, em seu “The Canon
of the Shaivagama and the Kubjika Tantras of the Western Kaula Tradition” no
capitulo sobre os quatro Amnayas afirma que a Lua, o Sol e o Fogo correspondem
à Chandini, Bhaskari e Tejotkata respectivamente. Segundo a perspectiva da antiga tradição Tantrika Trika estes aspectos estão
associados à Deusa em Suas formas de Para, Apara, Parapara.
Cada luminária possui um numero especifico de Kalas, sendo
10 Kalas para o Fogo, 12 para o Sol e 16 para a Lua. O MahaNirvana Tantra em
seu capitulo VI menciona quais são as Kalas respectivos à cada luminária, esta
mesma lista é apresentada no MantraMahoDadhi que também informa o Kala Nyasa.
Dhumra, Archi, Jvalini, Sukshma, Jvalini, VishpuLingini,
Sushri, Surupa, Kapila e HavyaKavya Vaha são as dez Kalas do Fogo.
Tapini, Tapini, Dhumra, Marichi, Jvalini, Ruchi, Sudhumra,
Bhogada, Vishva, Bodhini, Dharini e Kshama são as doze Kalas do Sol.
Amrta, Pranada, Pusha, Tushti, Pushti, Rati, Dhriti,
Shashini, Chandrika, Kanti, Jyotsna, Shri, Priti, Angada, Purna e Purnamrta são as dezesseis Kalas da Lua.
Vemos claramente que as Kalas são aspectos (porções)
relacionados às qualidades das luminárias as quais correspondem. Isto é
facilmente verificável ao se observar o nome em Sânscrito de cada uma das Kalas.
Impor um significado além do que é claramente expresso seria uma apropriação
indevida do termo Tantriko e não corresponde de forma alguma ao que é ensinado
na tradição. Portanto não há “sacerdotisas das Kalas” ou quaiquer coisas do gênero e nem
tampouco há associações entre este termo e as “flores” mencionadas em algumas
escrituras. Os romancistas que afirmam tal coisa estão apenas demonstram seu
desconhecimento da tradição e dos textos Tantrikos.
Que Mãe Kali nos abençoe
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