segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O voto Kapalika





Namaste amigos,

O objetivo deste pequeno ensaio é esclarecer a natureza da espiritualidade Kaula e seu eventual vinculo com o voto Kapalika (o KapalaVrata) e trazer elementos para a equilibrada apreciação destas duas tradições. Uma das maneiras de conduzir este estudo é observando os paradigmas e mitos presentes nas duas escolas pois, através deles, poderemos entender melhor os ritos que revivem e atualizam constantemente os ideais buscados nestas tradições.

A escola Kaula possui uma vasta produção literária e muito do que conhecemos ou ouvimos sobre Tantra vêm de escrituras desta escola. O RudraYamala Tantra, o BrahmaYamala Tantra, o Kularnava e o famoso MahaNirvana Tantra são exemplos mais populares. Os ideais Kaula podem, portanto, ser apropriadamente pesquisados nas escrituras Tantrikas e embora o foco destes textos esteja no detalhamento das práticas rituais, muitos mitos e narrativas também são encontrados por lá.

Os Kapalikas, entretanto, não possuem produção literária conhecida. Isto é facilmente compreensível devido ao caráter itinerante dos adeptos desta escola que realizam suas práticas em campos crematórios espalhados pelo subcontinente Indiano. O alicerce de seu paradigma e ideais está no KapalaVrata e é transmitido exclusivamente por tradição oral. Contudo isto não significa que não haja uma base racional em sua Teologia, lembremos que os Kapalikas também são conhecidos como “SomaSiddhantis” o que implica que eles seguem uma metodologia própria sob base racional (um Siddhanta).

Devido ao caráter extremo de seus votos e práticas, os Kapalikas logo adquiriram uma aura mística e misteriosa nas narrativas Indianas. Um dos primeiros relatos escritos de sua existência encontra-se no poema GathaSaptaShati escrito por Hala por volta do século III. Neste e em outros relatos encontramos a descrição das seis insígnias Kapalikas que eram carregadas junto com a Kapala que é o foco de seu voto, são elas: o cordão de pescoço, o ornamento de pescoço, os brincos, a jóia peitoral, as cinzas e o cordão sagrado (YajñoPavita). Apenas a presença deste último item já derruba definitivamente qualquer tentativa de associação dos Kapalikas com doutrinas “revolucionárias” ou “transgressoras”, ou ainda, com um “caráter anti-Brahminico” tão apreciado pelos escritores modernos na sua ânsia de inverter ou destruir os eternos valores sociais. O Kapalika tem um Dharma, ou seja, uma regra de conduta que o permite aproximar-se dos aspectos mais temíveis da Divindade.

O Dharma dos Kapalikas só pode ser compreendido mediante a perspectiva divina de uma narrativa já presente desde o período Védiko em textos como o Shatapatha Brahmana. Segue um breve resumo da mesma:
Diz-se que no começo dos tempos o deus criador Brahma criou à partir dos poderes de sua mente uma filha, e após a criação dela ele começou à desejá-la. Seu desejo era tão grande que ele fez para si quatro rostos de forma que nunca a perdesse de vista em qualquer direção que ela estivesse. Movida pela qualidade da modéstia ela veio para o plano terrestre de forma à escapar dos olhares, e tão logo foi descoberta, Brahma criou mais um rosto que olhava para baixo. O Senhor Shiva, na sua forma terrível de Bhairava, tomou conhecimento desta situação que vai contra o Dharma e a moralidade e num gesto heroico e imediato decapitou a quinta cabeça de Brahma que olhava para baixo.

Muito embora a ação de Bhairava fosse justa e digna para preservar os bons costumes, ao cometê-la ele se colocava na posição de um Brahmanicida, ou seja, de um criminoso que mata um homem sábio e digno de respeito. Este é um dos crimes mais terríveis segundo o Dharma pois os anciãos, os sábios e os detentores de conhecimento devem sempre ser protegidos. Ao cometer este crime ele deveria certamente ser punido. E assim o foi.

Shiva Bhairava foi então destituído de todas as suas opulências, de sua sabedoria, de todas as alegrias e de tudo o que fosse auspicioso, até mesmo de suas roupas. Ele foi mandado à Terra para que vagasse como um mendigo, sem nunca ter nenhum abrigo, completamente nú, carregando apenas a cabeça decepada de Brahma para que todos que o vissem soubessem do criminoso terrível que ele era.

Shakti, a Mãe Divina, foi a única que teve compaixão daquela figura terrível e assustadora. Ninguém mais sequer ousava olhar para aquele monstro encarnado. Sabendo que Bhairava se dirigia à Benares para mendigar, a Mãe do Universo tomou então a forma de AnnaPurna, a Deusa repleta de grãos e nutrição, Aquela que sacia todos os desejos da mente. Ao chegar ao destino Shiva Bhairava pediu auxilio à Deusa que plenamente o atendeu e, à partir daí, onde quer que ele fosse, era a Deusa que o nutria sob Suas diferentes formas.

Depois de um ciclo de tempo muito grande (MahaKala) Shakti abençoou o Senhor Bhairava e o restituiu à todos os seus esplendores. O herói que havia preservado o Dharma de forma tão imediata e agressiva estava de volta á suas opulências após ter expiado o demérito causado pelo seu ato tão impensado.

O KapalaVrata é uma celebração deste mito onde o herói é condenado ao tentar restabelecer a ordem Divina. Os Kapalikas carregam o crânio por toda a vida e só se alimentam daquilo que é oferecido lá, desta forma eles estão permanentemente identificados com o Senhor Shiva. Este voto tornou-se um exemplo místico dos buscadores da justiça e da proximidade com a Divindade, da qual eles passavam à depender completamente. Muitos sábios e santos adotaram este exemplo e o uso da Kapala se tornou um ícone de várias seitas Shivaistas, Budistas e Tantrikas. Kanhapada (KrishnaPada em Sânscrito) que viveu no século XI e era um grande expositor do Budismo Tântrico Sahajiya apresentava à si mesmo como um Kapalin, como aquele que carrega um crânio.

Observamos então um dos mais claros aspectos em comum entre a doutrina Kaula e a dos Kapalikas – a mítica do herói, daquele que se esforça para vencer as tribulações em nome da ordem, da justiça e do Dharma. A disciplina espiritual mais característica dos Kaulikas é o Vira Sadhana, a disciplina do herói. Aquela onde os cinco elementos sagrados são consumidos em honra à Deusa, buscando alí o equilíbrio de todos os aspectos inferiores de sua psique e a união com a Divindade.

Que Mãe Kali nos abençoe

Rudrananda Saraswati

Um comentário:

Rudrananda Saraswati disse...

As escrituras Tantrikas dos Agamas diferenciam os antigos Pashupatas e KalaMukhas dos Kapalikas e os Aghoris. Entretanto nem sempre esta identificação é levada em consideração e muitos Aghoris se dizem Kapalikas e vice-versa.